quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Portugal 2020

O Parlamento fechou. O Governo governa via Skype a partir da ilha de S. Miguel. O Presidente Nóvoa, estupefacto, vive na Biblioteca da Universidade de Coimbra. Os portugueses habitam tranquilamente nas várias cidades europeias e, muitos deles, estão casados com lindíssimos homens e mulheres sírios e afegãos. O país está despovoado de autóctones com excepção dos empresários dos vários hostéis e hostais e outros que tais, dos empresários de triciclos, motociclos, tuktuks (que voltaram a poder circular em Alfama), dos vendedores de pastéis de bacalhau com molho bernaise e dos neonatas que abriram, finalmente, lojas fora de Belém. Em Portugal inventou-se uma novilíngua para falar com os milhões de turistas que visitam o país. Os jornais passaram a ser comestíveis. Por exemplo o correio da manhã passou a ter sabor a cozido à portuguesa, o público a tarte de beringela, e DN a bife com molho à café e o expresso agora, é uma italiana em chávena fria. Quando se vê um tuga nas ruas das nossas cidades há um certo racismo latente e temem-se, sobretudo por parte da comunidade alemã em trânsito, reacções de xenofobia incontrolável. Os poucos tugas que restam, vivem agora em residências temporárias, cedidas pelos hotéis de luxo, até conseguirem um visto shengen para a França ou para a Holanda. Em todo o país há eventos permanentes: a tea shirt letónia molhada, o festival da dobrada à moda de Estrasburgo e muitos outros. O país agora chama-se Toogal e as viagens low cost já não existem. Para visitar Toogal agora não se paga nada. É considerado património da humanidade e todos os custos são suportados pelo Vaticano e pelas agências de rating.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Pequena homenagem a Ananda K. Coomaraswamy

O tempo, sempre mutante, corre no espaço em busca de um local de descanso.
Corrida louca e desgastante. No percurso, gasta-se, vai perdendo pedaços, desfazendo-se em promessas.
No espaço onde corre o tempo reina a quietude.
Este espaço, onde corre o tempo, estende-lhe a mão amigável mas, o tempo, encolhe-se e rejeita a oferta.
Num derradeiro esforço, o tempo tenta preencher o espaço circundante mas, no acto, esboroa-se, arde e finda.
No horizonte, em suspensão, o espaço permanece estéril, branco e impreenchível.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Travão

Agora o que eu precisava era de um cataclismo universal. De uma ausência de movimento. Que parassem as leis da termodinâmica, da gravidade e as outras universais e que o tempo ficasse como está. Que tudo deixasse de ir na direcção da morte. Apenas por algum tempo, para termos tempo de amar ainda como somos, com toda a energia e vontade de dar ao outro o que temos para dar, tudo o que temos para dar, no íntimo, na partilha, no sexo, no amor que ainda podemos oferecer se esse inexorável movimento parasse, se quedasse em suspenso da carícia, do afecto, do gesto interminável de gostar.

Seria, claro, uma suspensão provisória, para que as anãs brancas não se aquietassem para sempre e as gigantes vermelhas não fossem impedidas de se consumirem no seu fogo interno, tão quente. Haverá maior buraco negro que aquele que nos transforma em menos que pó? Gostava tanto de acreditar na reencarnação!

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Corpo-ave



Desejo teu corpo-ave
A mão tão fina, o rir
tão claro na água do rosto.
Correr pelos montes azuis

Da água no verde
o traço fugidio do cão,
a calma do dia que finda.
Dormir dentro da cascata

A noite dança o fogo do céu
Urros emprestados
Um calor.
Falta-me dizer

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Silêncio



Le Silence n’est pas un Oubli.
Não coloco o silêncio contra as palavras. Há monossílabos tão ruidosos como o barulho do camião do lixo na noite. As falas mais silenciosas são quando as letras gritam luz; são as falas de alguns textos sagrados, as falas de alguma poesia, o risco do grito do mocho na noite quieta. Oposto ao silêncio está o movimento da mente, a ditadura da mente. A meditação é o Silêncio quando o fluxo ruidoso do pensamento cessa e fica a espessura surda do vazio. Não é um silêncio calado mas um silêncio parado. Numa paisagem nocturna no meio do campo, ouvimos o silêncio mas é um silêncio que nos é exterior,  elaboramos e pensamos sobre ele e dizemos: gosto tanto deste silêncio. Ao dizermos isto não estamos em silêncio, somos espectadores gritantes do silêncio. Em meditação, somos o silêncio. Focando a mente num “objecto” de meditação, deixamos rarefazer progressivamente os pensamentos criando espaço. Às tantas, esta dualidade daquele que pensa e não quer pensar e do espaço que o não pensamento faz crescer, esta dualidade deixa de existir e aí, sim, silêncio, não esquecimento.
Morte-vida, cessação do eu-ego, anulação do corpo, descansar no vazio se estas palavras ainda fazem sentido nesses territórios.
Le silence est une clairvoyance.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Deserto


Cortar todas as pontes
Dizer palavras irreversíveis
Instalar o conflito no corpo cristal
Empurrar o ego e o outro
Ocupar o espaço, todo o espaço das frases possíveis
Calcular a agressão sempre devastadora e chorar o fel
Não querer ser feliz
Não dominar o equilíbrio e desenhar tempestades na instabilidade
Matar a racionalidade e tudo à volta
Alimentar o deserto
Deserto.

sábado, 24 de setembro de 2011

O que não lerás

I
Uma energia criativa congrega-se subitamente
e enche espaço de entropia possível.
Palavras.
Listas azuis e amarelas no verde tomilho.
Sexo redondo por cima da água prata.
Sons.
Imaginar o que é preciso para o encontro destas matérias.
Imaginar o trabalho de todas as forças que concorrem
para este raro encontro no tempo.
Desafiar todas as causalidades e todas as partículas.
Descentrar-se, um evento raro.
Encontrar no lugar do outro o seu lugar.
Pleno e aberto.
Total, com a individualidade intacta.
Difícil conjugação estelar.
Poeira.

II
Este sofrimento que se instala como um paludismo recorrente.
Mosquito de água nos olhos.
Uma solidão cristal.
Casulo, borboletas ausentes.
Tropeçar no caminho para dentro e aquietar o sangue.
E o tempo.
Uma resina escorre nas alamedas da luz.
Uma neblina âmbar cavalga o Sol.
Emagrece o ar da manhã e não vejo barcos.
Orla.
Voltar a entrar pela porta entre os olhos no patamar cúbico.
Não dizer.